E.1027 + Le Corbusier, a história de uma foto.
Não adianta tu me dares o teu romance para eu ler... eu já sei que vou odiar... porque odeio ler textos ruins... e se por acaso ele for bom... vou odiar igual... porque também sou escritor e odeio quando leio um texto melhor do que os meus....
É mais ou menos assim que o Hemingway do Woody Allen responde ao escritor Gil Pendler quando este lhe pergunta se ele se importa em ler o seu manuscrito. Pendler é um roteirista de Hollywood que está passando uns dias de férias em Paris com a sua chatérrima noiva... e é o protagonista de Meia Noite em Paris o novo filme do pai do Zelig.
E diga-se de passagem, um baita filme!!! O realismo fantástico no qual o cara que gosta de enteadas faz o espectador mergulhar é dotado de uma magia impar.... não tem como dizer que a Europa não fez um bem enorme à ele... desde Match Point ele não lembro de um filme dele que seja ruim... antes pelo contrário, Vicky Cristina -por exemplo- é uma obra de arte... mas eu não vou escrever sobre o filme... vou deixar esse Momento Pipoca para o desaparecido Gabriel... e quem sabe até o filme reprisar na Sessão do Tarde o nosso amigo tem a dignidade de retornar ao blog... volta Gabrielito!!!
Buenas, retornando à fala do Ernest do filme... ele complementa o diálogo dizendo que um escritor não deve pedir opiniões sobre o que escreve à outro escritor... pois a competição, mesmo que inconsciente, sempre vai existir... e é aproveitando essa passagem do filme que eu vou contar a história da foto abaixo...
Le Corbusier, além de vândalo, exibicionista... |
Para quem ainda não foi apresentado, esse senhor com a bunda de fora é o Le Corbusier... arquiteto franco-suíço que ajudou a mudar a história da arquitetura moderna... talvez alguns saibam que a enorme cicatriz que ele tem na perna direita é fruto da hélice de uma lancha que o acertou enquanto ele nadava e quase tirou a sua vida... mas será que todos sabem onde o marido da dona Yvonne (que na verdade se chamava Jeanne Victorine) foi flagrado pintando um mural com as vestes que Deus lhe deu?
Para entender toda a história primeiro temos que conhecer um carinha chamado Jean Badovici, ele estudou arquitetura em Paris após a Primeira Grande Guerra... mas foi como editor da revista L’Architecture Vivante que ele realmente se destacou. Publicada entre 1923 e 1932 a revista foi peça importante na divulgação e crítica da arquitetura moderna... Badovici gostava muito de vinhos tintos e de mulheres mais velhas e foi entre uma garrafa e outra de Cabernet que ele começou um romance com a arquiteta irlandesa Eileen Gray... filha de uma rica família que desde 1902 vivia em Paris e tinha 15 anos a mais que Badovici... desse romance, em 1924, nasceu o projeto de uma casa de férias na Riviera Francesa, à beira mar... mais precisamente em Roquebrune.... a casa E.1027.
O nome E.1027 é um código numérico para as iniciais dos pombinhos: E (Eillen) 10=J (Jean), a décima letra do alfabeto... na mesma linha, 2=B (Badovici) e 7=G (Gray).... a casa também é conhecida como Casa Branca. Finalizada em 1927, com uma planta flexível e aberta a casa se integra naturalmente ao belo entorno e se percebe na prática o resultado de um obcecado trabalho da autora em estudar e entender a incidência do sol e dos ventos sobre o terreno nas diferentes estações do ano... uma arquitetura mais orgânica e funcional....
Eileen era a amante de Badovici... já se destacava há tempos pelos seus projetos de mobiliário... mas ela não era um Às... e Le Corbusier era... devido ao trabalho de Badovici como editor ele e o arquiteto franco-suiço se tornaram amigos próximos e vários foram os verões que o Corbu e a dona Yvonne (que ele chamava carinhosamente de Vonvon) passaram na E.1027...
Corbusier, Yvonne e Badovici... tomando um tinto na E.1027 |
Quando Corbu, pela primeira vez, esteve na casa ele ficou encantado... escreveu uma carta à Eileen dando os parabéns pelo projeto magnifico e pela capacidade que ela de utilizar a arquitetura para maximizar a paisagem e valorizar o entorno, elogiou o desenho do mobiliário... o Hemingway do Woody diria para ela ficar com o pé atrás perante os elogios do colega... e isso seria o melhor que ela teria a fazer...
Devagarinho o encantamento pela E.1027 se tornou uma obsessão na vida do Corbusier... ele e Yvonne usavam mais a casa do que os proprietários... e com a separação de Badovici e Gray, em 1932, isso se tornou ainda mais freqüente... até que em 1937 Le Corbusier (então com 50 anos de idade), com o aval do amigo Badovici, começa a pintura de uma série de oito murais nas alvas paredes da casa... trabalho o qual ele finaliza depois de dois anos e que rende a memorável imagem dele nú pintando...
Antes de iniciado o trabalho de restauração.... vaso ruim não quebra, o mural estava em ótimo estado |
A reação de Gray não poderia ter sido muito diferente... ela classificou os murais de Corbu como um ato de vandalismo contra a sua obra e pediu educadamente que os murais fossem retirados pois feriam o espirito do projeto.... os murais não só permaneceram como Corbusier publicou fotografias da casa e dos murais dizendo que ele estava dando vida à paredes tristes onde nada acontecia... e para completar não deu os créditos do projeto à sua autora deixando em aberto o entendimento de que aquele seria um projeto seu... para a Ms. Gray sobrou comemorar durante a Segunda Guerra quando ela soube que os soltados alemães ocuparam a casa e utilizaram um dos murais para fazer tiro ao alvo...
Em 1951 Corbusier constrói próximo à E.1027 sua Petit Cabanon e no dia 27 de agosto de 1965, aos 78 anos, ele morre durante um banho no Mediterrâneo e seu corpo é encontrado nas rochas próximas à E.1027.... quanto à morte de L.C. existe a versão de que ele estava sofrendo de depressão e em um dia ruim tirou toda sua roupa e se jogou no mar sem ter o objetivo de voltar...
Sobre a E.1027: ela chegou a estar em estado de ruína e abandono, mas a municipalidade de Roquebrune-Cap-Martin e o governo francês a compraram e desde 2008 ela passa por um processo de restauração.... e infelizmente, devido à um ponto de vista histórico, o vandalismo invejoso de Le Corbusier deverá ser mantido.